Arte Afro Brasileira (uma “pré”-história do conceito)
Foi somente na atualidade (a partir do séc. XX que se criou o termo “arte afro-brasileira”). Mas isso não quer dizer que antes não houvessem artistas ou manifestações artísticas que fizessem referências aos negros e à sua cultura. Falar de arte afro-brasileira é incorrer em seus diversos questionamentos quanto a sua definição, alcance e obras. Para além das tendências que se pode querer seguir para se desenvolver um conceito sobre a arte afro-brasileira, alguns parâmetros devem ser previamente colocados na mesa: a) é certo que os primeiros artífices negros no país eram de origem banta (do centro sul africano), e é de se supor que pelo menos uma parte deles já chegaram ao país cristianizados, devido ao processo de conversão ao cristianismo desenvolvido pelas missões dos cappuccinos ou outras missões portuguesas, iniciadas a partir do estabelecimento dos primeiros contatos das frotas lusas com o Reino do Congo em 1482, ou seja, dezoito anos antes de chegarem pela primeira vez ao Brasil; b) Para além da arte barroca, não temos registros suficientes de artífices alforriados que pudessem fundamentar tal forma de arte dita “afro”. Por outro lado, a condição de escravo não impede, mas limita o resultado dos esforços das elaborações visuais; sendo assim, o conceito de arte afro-brasileira é forçosamente recente e não teve ambiente de desenvolvimento nem um uso aplicado ao Brasil anterior às últimas décadas do séc. XX. c) também a falta de informações histórico-culturais a respeito da África e de quem foram os africanos e quais as criações e modificações culturais que eles empreenderam no Brasil, fatores de estudos ainda escassos no campo artístico impõe à formação de uma tal “arte afro-brasileira” de algum modo necessariamente relacionada também ao conhecimento e principalmente ao desconhecimento da África e da afrobrasilidade.
Dito em outras palavras, a questão do surgimento de uma arte dita “negra” ou “afro-brasileira” pode ser avaliada desde que se estude a África, sua arte e sua história relacionada à exportação de artífices que desenvolveram novos modelos influenciados em algum nível com sua própria base materna e seus subsídios miscigenados aos ibéricos e indígenas, grupo com os quais estes artífices reformularam o design, a arte e a tecnologia do Brasil em construção. Por outro lado, essa realidade construtiva de um Brasil a ser desbravado foi iniciada pelo processo não artístico da exploração capitalista e da colonização de tipo extrativista, não cultural e devastadora na qual se retirava recursos sem sustentabilidade, transmissão tecnológica ou mesmo sem uma tentativa de criação de uma sociabilidade que abrisse espaço para manifestações artísticos-culturais, como ocorreria em qualquer sociedade organizada. Essa realidade começou a ser modificada, entretanto, com o crescimento econômico fornecido pela extração e o processamento da cana-de-açúcar no nordeste brasileiro. Pode-se dizer, por isso, que a “cultura do açúcar” ou a cultura criada no Brasil em torno dos canaviais em meados do séc. XVI, com aprofundamento no séc. XVII pavimentou o surgimento de uma arte popular afro-brasileira no Nordeste justificando, em partes, o conceito de “pré”-história da arte afro-brasileira, no sentido daquelas elaborações visuais produzida por africanos e descendentes e que vieram antes do surgimento dos museus de arte no país. Nesse período, vê-se a aparição de folguedos e inúmeras manifestações populares que serão posteriormente desenvolvidas nas formas de arte populares como os Maracatus, bumba-meu-boi, congadas etc....
Embora estas tenham sido uma das primeiras presenças artísticas negras, não devemos com isso dizer que, no primeiro dos grandes ciclos econômicos que foi o da madeira, instituído a partir da década de 1530 não pudesse ter se desenvolvido uma cultura artística negra popular com poéticas e elaborações próprias, ainda que sobretudo a musical e coreográfica, e que, ao mesmo tempo, permitissem ser doravante categorizadas como as “primeiras formas de arte com fundamentos afro-brasileiros”. Mas essas manifestações artísticas igualmente não nos deixaram registros, por enquanto, o que nos tem impedido de propor a sua historiografia. A busca pelos primeiros registros de festividades populares brasileiras nesse período abarca temporalmente o séc. XVI em diante; e o povoamento das regiões, em primeiro lugar, a zona da mata, em segundo, o agreste e, em terceiro, o sertão, em quarto o meio norte e, em quinto, a região amazônica. Esses seriam os locais mais prováveis para a obtenção desses registros. Para cada uma das temporalidades ligadas aos primeiros ciclos econômicos há uma correspondência para a cultura artística resultante ali desenvolvida. Assim, depois das “festas antropofágicas indígenas” observadas a partir de Pernambuco, em 1548, pelo viajante Hans Staden (1525-1576) os primeiros registros de uma “arte popular” afro-brasileira originaram-se, provavelmente, a partir criação das seguintes instituições e manifestações populares na zona da mata: 1) (na religião) com a criação da irmandade do rosário em Portugal e no Brasil desde 1586 (LEITE, Serafim. S.J., 1938, pp.340-341; SACRAMENTO, J. 2014.p. 02) (na dança e na música) com a presença dos Congos e a presença do batuque e do semba dos escravos de Angola (não datados) de onde se germinaram respectivamente o jongo e o Lundu,etc. 3) (“Plástica”) na cultura material em geral da zona da mata exemplificada nos trançados, esteiras, cestas, peneiras, abanos bem como a tecelagem, bordado e renda etc. que perfazem um conjunto artístico em parceria com as práticas festivas populares que redundou, entre outras manifestações também antigas como a festa do divino de Palmas de Monte Alto (BA) e Alcântara (MA), em outras mais recentes como as farras de bois, maracatu, folias de reis e cavalhadas em diferentes regiões do país, facilitando todos esses o surgimento do núcleo duro cultura brasileira.
Considerando improvável que uma maioria populacional não construa cultura artística de algum tipo, num documento datado de 1583 estimava-se que na cidade de Salvador equivaliam em quatro mil o número de escravos da Guiné, três mil o número de Portugueses, contra os oito mil indígenas (CARDIM, F.1939, p.19). Há cidades como Porto Seguro (BA) (com chegada dos Portugueses em 1500 e a fundação do município em 1534, e que, virtualmente, equivale à época chegada dos negros cativos ao Brasil), bem como Cananéia e suas esteiras feitas de peri e esculturas de Santo Antônio, bem como festas dedicadas a ele (ALMEIDA, F. G. 2012, pp.74-81) e Ilha do Bom Abrigo, Itanhaém e São Vicente (SP), Vila Velha, Vitória e São Matheus (ES), para citar apenas alguns exemplos, que devem fornecer pistas adequadas para o fortalecimento desse tipo de conhecimento artístico. Como não pudemos contar com muitos historiadores do período, o trabalho arqueológico nas cidades mais antigas da zona da mata poderão nos mostrar com algum grau segurança quais são os registros das nascentes ciências da arqueologia da escravidão e arqueologia pública que seriam suficientes para indicar o nascedouro “pré”-histórico de uma arte afro-brasileira” na forma de arte popular.
Adiantando ainda mais, é justo destacar igualmente que, no período Barroco, ainda que seus artistas negros e mestiços fossem a maioria, e neles se sustentassem as práticas artísticas advindas das irmandades dos homens pretos e das corporações de ofícios do Brasil setecentista e oitocentista e muito embora o barroco brasileiro tenha sido apontado como o período das origens da arte nacional e, como disse Mário de Andrade, aonde tenha ocorrido “a maior mulataria” nas artes plásticas, também não foi possível identificar conceitualmente as bases da arte afro-brasileira, tal como esta foi conceituada na contemporaneidade. Até aqui, parece que os argumentos a favor de uma possível “africanidade” nos artistas barrocos não foram conclusivos ou bem não justificam por si a transferência do termo “artista afro-brasileiro”, que tem sido aplicado geralmente a todo artista de origem africana, ao epíteto “arte afro-brasileira”, enquanto produtos do fazer artístico destes artistas específicos. Seria preciso, portanto, a chegada do séc. XX e a formulação dos museus de arte no Brasil para que as propostas de identificação desta arte pudessem aparecer teórica e experimentalmente. Em suma, da mesma forma que o termo “Barroco” em artes plásticas é uma nomeação à posteriori a alguns dos objetos da arte religiosa do período, o termo “arte afro-brasileira”, com as implicações das suas variabilidades estilísticas, uso de materiais e intencionalidade artística diversas não pode ser aplicado a um período histórico específico senão a partir das artes modernas e contemporâneas.
Sendo assim, no mundo contemporâneo, depois da implantação da Academia com a Missão Artística Francesa (1816) no país, os modelos artísticos que se distinguiam da artesania e produção de móveis, maquinário, utensílios, ferramentas, construções de edifícios, etc., criaram modelos artísticos acadêmicos que se sobrepuseram a todos os outros ganhando espaço para uma noção de arte relacionada ao modelo europeu de contemplação abstrata de formas artísticas ligadas ao belo dito “não-utilitário” nas artes plásticas e a análise que se quis “desinteressada” ou “imparcial” da complexidade das formas e da diversidade de execuções na área da composição musical etc. A arte renascentista, nesse sentido, serviu de guia para a formulação acadêmica, que foi progressivamente questionada desde o final do séc. XIX e sua filiação finalmente rompida com as vanguardas europeias, muitas delas com apoio nas noções primitivistas imputada a povos não-europeus...sobretudo africanos, asiáticos e da Oceania.
Do nosso lado, e nessa mesma época, em 1908, Nina Rodrigues lança seu inaugural “As Bellas Artes dos Colonos Pretos”, fazendo associar a “arte preta” antes à “arte religiosa” dos candomblés que a “belas artes” em sentido contemporâneo. De forma semelhante, em 1945, Roger Bastide publicou uma série de artigos no Jornal Estado de São Paulo intitulados “Estética Afro-Brasileira” (esta foi a análise mais penetrante que se fez da atualmente chamada ‘arte ritual’). A busca pela “estética da negritude” que encontrou alguns estetas e críticos, passou da pena do intelectual aos arautos da prática de expor esses objetos. Citemos alguns deles: Abdias do Nascimento (1914-2011) que, depois do 1º. Congresso do Negro Brasileiro (1950) e do Concurso de Artes Plásticas (1955) cujo tema era o “Cristo Negro” passou a auxiliar artistas plásticos negros a produzirem suas obras, resultando em uma exposição que o intelectual e artista promoveu no Museu da Imagem e do Som (MIS/RJ), em 1968. Exposições relacionadas à “arte ritual” já vinham sendo realizadas no contexto dos Congressos Afro-Brasileiros, pelo menos desde o de Recife, realizado em 1934, por exemplo, com um dos trabalhos de Gilberto Freyre tratando sobre “O Negro na Arte Popular e Doméstica de Pernambuco”, e outro de Gonçalves Fernandes “A Pintura e a Escultura entre os Afro-Brasileiros”- entre outros relacionados às artes (SILVA, R.A., 2016, p. 33). Embora a exposição de Abdias do Nascimento tenha tido um caráter ainda primitivista e popular (SILVA, R.A., 2016 p.194) o destaque a artistas negros excepcionais como Agnaldo Manoel do Santos (1926-1962), José Heitor da Silva (1937) conquista, a nosso ver, o histórico de ser a exposição que inaugura, de certo modo, a “arte afro-brasileira” como será entendida a partir de então. Citemos marcos paralelos como A Mão do Povo Brasileiro - curadoria Lina Bo Bardi (MASP, 1969) com Agnaldo dos Santos, Aurelino dos Santos, Madalena dos Santos Reinbolt, Mestre Vitalino, Zé Caboclo, entre outros e exemplo que dá continuidade ao que fez Abdias do Nascimento, com a curadoria de arte afro-brasileira visto com o artista Waldomiro de Deus (1944) que promove o “I Encontro de Artes de Osasco”, com obras, entre outros, de Conceição Silva (1979). Mas o grande marco que demonstrou a enorme potencialidade para essa arte foi mesmo a exposição “A Mão Afro-Brasileira” (1988) com a curadoria de Emanoel Araujo (1940), essa que consagraria o núcleo central dos artistas considerados hoje clássicos dentro dessa temática; nomes como Wilson Tibério (1920-2005) José de Dome (1921-1982), Rubem Valentim (1922-1991), Hélio Oliveira (1929-1962), Ronaldo Rêgo (1935), Edival Ramosa (1940-2015), Izidório Cavalcanti (1965), entre outros, comporiam a primeira geração dos que orbitam no campo gravitacional das exposições de Emanoel Araujo e, posteriormente, no próprio Museu Afro Brasil – primeiro museu brasileiro com foco em artes plásticas e com ênfase naquelas produzidas por negros. Outro exemplo pontual de grande envergadura foi a criação do módulo “Arte Afro-Brasileira” da Exposição Brasil 500 anos, com curadoria de Kabenguele Munanga (1940), Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy) (1952) e com curadoria geral de Nelson Aguilar (1943); e “Negro de Corpo e Alma”(2000), com curadoria de Emanoel Araujo. Nesses módulos, lançou-se personagens importantíssimas para a história da arte afro-brasileira, desde ali entendida como a arte de herança africana no Brasil manifestada por artistas negros e não negros, Pedro Paulo Leal (1894-c.1968), Heitor dos Prazeres (1898-1966), Niobe Xandó (1915-2010) Mestre Didi (1917-2013), Rubem Valentim (1922-1991), Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962), Ronaldo Rêgo (1935), Emanoel Araujo (1940), Rosana Paulino (1967), como foi dito, alguns dos nomes hoje clássicos dentro desse contexto.
Por conseguinte, uma distinção infeliz para as artes plásticas desenvolvidas historicamente pelos museus entre as manifestações artísticas acadêmicas e populares fez a chamada arte afro-brasileira se aproximar desta última e se afastar daquela, em termos teóricos. Isso só começaria a se modificar a partir do momento em que mais e mais exposições de arte destacaram artistas que circularam em torno dos motivos afro-brasileiros, mas que advieram da academia ou tiveram algum tipo de treinamento técnico específico. Depois das exposições inaugurais do Museu da Imagem e do Som (MIS/RJ), em 1968; “I Encontro de Artes de Osasco, em 1979; A Mão Afro-Brasileira” (1988) “Negro de Corpo e Alma” (2000) módulo “Arte Afro-Brasileira” da Exposição Brasil 500 anos (2000), entre outras, as antigas distinções acadêmicas e as oposições arte popular e erudita para essa arte, também deixaram de fazer sentido.
Por fim, podemos destacar três momentos para uma possível “pré-história” da arte afro-brasileira: 1) momento inaugural: surgimento e desenvolvimento das formas populares de manifestações afro-brasileiras do período colonial; 2) momento intermediário: surgimento e desenvolvimento dos artífices da Igreja do período barroco até o séc. XIX e XX. 3) momento atual: finalmente com o surgimento e desenvolvimento do conceito de “arte afro-brasileira” nos sécs. XX e XXI, seguindo os novos padrões acadêmicos ou os dos museus de arte moderna e contemporâneas.
Uma questão fundamental ainda persiste. O que é hoje chamado arte afro-brasileira não tem nada a ver com os maracatus, nem com o barroco, nem com a “pura” arte ritual; refere-se estritamente a objetos artísticos produzidos no circuito dos museus de arte. Sendo assim, a antiga terminologia que buscava a generalidade de um “museu de arte negra” teve de ser refeita na modernidade, abrindo espaço para além das esferas etnológicas da cultura material e imaterial africana no Brasil reconstruindo e “modernizando”, por assim dizer, os sentidos do ser afro-brasileiro e de sua arte. O contínuo desenvolvimento do conceito de “arte afro-brasileira” demonstrou ser por isso mesmo perpétuo. Enquanto a divisibilidade entre o “nós e eles” for o combustível que assegura postos e descarta concorrências, reforçada pelos melindres mercadológicos do mundo artístico e profissional, o “ser negro” dentro do que é “ser brasileiro” mal conseguirá sentir a força de sua própria identidade. Portanto, aquilo que for a nossa “pré-história” seja a da arte afro-brasileira, seja a da herança negra no Brasil, seja a da própria identidade negra de todos nós brasileiros elas conseguiram nos deixar algumas pistas nas quais poderemos nos guiar; todavia, para quaisquer lados que se olhe desse esforço, a única certeza que se têm é que essa história mesma ainda está para ser escrita.
Fontes de pesquisa
ALMEIDA, F. G. Terra de Quilombo: arqueologia da resistência e etnoarqueologia no território Mandira, município de Cananéia/SP. Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012 [Dissertação de Mestrado].
CARDIM, Fernão. “Narrativa epistolar”, in: Tratados da terra e da gente do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1939.
GABARRA, Larissa Oliveira. Congado: A Festa do Batuque. IN Caderno Virtual de Turismo, Vol. 3, N° 2, 2003
LEITE, Serafim. S.J., História da Companhia de Jesus no Brasil . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. Vol.II, pp.340-341.
MUNANGA, Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é, afinal? In: Catálogo Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Virtuais, 2000.
SACRAMENTO, J.A. de Ávila. Algumas Considerações sobre a Devoção e a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Diocese de São João del-Rei – MG, 2014. Disponível em: https://goo.gl/1bQ5r3 Acessado em: jul. de 2017.
SALUM, Marta H. L. Cem anos de arte afro-brasileira. In: Catálogo Mostra do Redescobrimento – Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Virtuais, 2000.
SOUZA, Marina de Mello e. Santo Antonio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, Niterói, v. 6, n.11, p. 171-188, 2001.
______________________. Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma reflexão sobre miscigenação cultural. Afro-Asia (UFBA), Salvador, UFBA, v. 28, p. 125-146, 2003.
Páginas da Internet (acessadas em jul. 2017)
http://www.abdias.com.br/museu_arte_negra/museu_arte_negra.htm
https://www.youtube.com/watch?v=H9JuUOpbIko