Iconografia religiosa afro-brasileira
Peji (instalação) Vestimentas dos orixás Representações de Iemanjá Agogô, atabaques e afoxé Os cultos religiosos afro-brasileiros empregam uma variedade de imagens e signos em seus templos, cerimônias e festividades. As cerimônias religiosas contam com objetos como instrumentos musicais, roupas, adereços, emblemas, imagens e ferramentas ligadas a divindades específicas, além de utensílios diversos, tais como as louças usadas para compor os pejis (altares), os assentamentos e as oferendas. Esses objetos ainda são complementados pelos diferentes alimentos e pratos oferecidos às divindades, com sua visualidade característica, pelas ervas, folhas e frutos empregados no preparo de líquidos e bebidas e pela própria disposição da arquitetura e do mobiliário dos cultos, resultando num conjunto visual abrangente, orgânico e profundamente integrado ao culto em todos os seus aspectos. Símbolos visuais ainda são complementadas por outros estímulos sensoriais, como sabores, aromas, ritmos, cantos e danças, numa composição de estímulos que envolve todos os sentidos.
Entre esses objetos, os emblemas, ferramentas e adereços carregam-se de especial carga simbólica, pois têm a função de representar diferentes divindades (orixás, voduns, inquices, caboclos ou encantados, de acordo com a religião) e seus vários aspectos e mitos a partir da composição de formas, sinais e cores. Eles constituem uma verdadeira linguagem simbólica de grande complexidade, que o iniciado é capaz de decifrar de acordo com seu grau de domínio dos mistérios religiosos. Destacam-se os objetos carregados pelos iniciados, que estabelecem hierarquias internas nos terreiros e indicam as divindades que se manifestam, a exemplo do oxê (machado de lâmina dupla de Xangô) ou dos abebês (leques ou abanos principalmente associados a divindades femininas). Os ferros são objetos forjados em metal, de formas geométricas e estilizadas, usados nos assentamentos e altares para indicar as divindades. Composições geométricas também caracterizam, na umbanda, os pontos riscados desenhados em giz. Entre os adereços incluem-se os fios ou colares de contas, cuja combinação peculiar de cores é usada para indicar hierarquias, divindades e aspectos míticos. Tudo isso se combina para compor um código de cores e formas correspondentes à mitologia afro-brasileira.
Imagens das diferentes divindades também integram esse acervo visual. Há algumas de caráter mais africanizado, às quais se somam releituras brasileiras e modernas e também a iconografia católica dos santos, na medida em que muitos terreiros reconhecem a correspondência entre santos católicos, por um lado, e orixás, voduns e outras divindades afro-brasileiras, por outro. Até por isso, a iconografia religiosa afro-brasileira evidencia forte influência da imaginária católica. Essa relação é recíproca: alguns oratórios e imagens de santos em nó-de-pinho, em especial aquelas produzidas na época da escravidão, também exibem influências da escultura africana.
Essa iconografia religiosa pode ser considerada como uma verdadeira arte sacra cujas características desafiam noções ocidentais tradicionais de arte, ao resultarem da composição de diferentes elementos e materiais, duráveis e não-duráveis, visuais ou não. Sua visualidade congrega aspectos tanto naturalistas (ou seja, representações de objetos e seres que são formalmente semelhantes às coisas representadas) quanto simbólicos e abstratos (ou seja, formas e cores associadas de maneira mais ou menos arbitrária às coisas representadas, sem semelhança visual com elas).
Essa rica iconografia não se limita ao domínio religioso em si, fazendo-se presente também na cultura brasileira em geral, por vezes sem uma delimitação rígida de fronteiras. Isso ocorre por meio de diversos canais através dos quais signos litúrgicos ganham novos usos sociais profanos, bem como novos objetos se incorporam aos cultos. Festas como o carnaval, maracatus, afoxés, congadas e outros blocos festivos e/ou musicais, festividades religiosas com intensa participação popular, como as festas do Bonfim ou de Iemanjá, além do trânsito de símbolos pelos domínios da gastronomia, da moda, da decoração e, evidentemente, das artes plásticas (como o demonstra expressivamente o acervo do Museu Afro Brasil); tudo isso constitui canais pelos quais a icononografia religiosa afro-brasileira ganha representatividade popular mais ampla e ultrapassa as fronteiras dos terreiros, evidenciando uma intensa plasticidade e dinâmica de apropriações.
Fontes de pesquisa:
- CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira: orientações pedagógicas. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
- FONSECA JÚNIOR, Eduardo. Dicionário antológico da cultura afro-brasileira: incluindo as ervas dos Orixás, doenças, usos e fitologia das ervas. São Paulo: Maltese, 1995.
- LODY, Raul. Dicionário de arte sacra e técnicas afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
- SOUZA, Marina de Mello e. Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma reflexão sobre miscigenação cultural. Afro-Ásia, Salvador: Universidade Federal da Bahia, n. 28, p. 125-146, 2002.
- Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, Rio de Janeiro: Relume Dumará, n. 11, p. 171-188, jul. 2001.