Liceu de Artes e Ofícios da Bahia


O objetivo de formação do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia em Salvador seguiu o padrão geral da criação dos outros Liceus: formar mão-de-obra especializada para a lavoura, a indústria e o comércio. O Liceu da Bahia, no entanto, diferente dos Liceus de São Paulo e Rio de Janeiro, teve especificidades que valem a pena serem destacadas: o papel da substituição do trabalho escravo e a formação maciça de negros artistas e artífices.

Para aqueles que ainda sustentam que o Brasil não é um país em que há colaboração ou que não temos a cultura do voluntariado é sempre possível e até necessário indicar o estudo da criação dos Liceus de Artes e Ofícios. Quase sempre a iniciativa partiu de figuras empreendedoras que, com auxílio de agremiações de classe e de populares anônimos construíram instituições que não só fizeram frente ao Estado (vide a gratuidade dos cursos oferecidos e a implícita necessidade de controle Estatal dos avanços nas artes e nas ciências promovidos pelos Liceus) como, em muitos sentidos, fizeram frente a instituições privadas de ensino de arte e técnica cujo objetivo imediato era apenas o lucro. Ao contrário, com relação ao Liceu da Bahia, desde seu início, em 1872, ele foi erguido com o suor e com a doação de pessoas de diversas classes sociais. As agremiações que se juntaram e solicitaram donativos de todos incentivaram até na construção do prédio sede da instituição.

Como foi dito, o objetivo principal da criação do Liceu da Bahia, não nos enganemos, era o mesmo de todos “qualificação profissional” - e ainda, o processo de aburguesamento ou de diluição da presença de camadas sociais mais baixas dentro da instituição, foi também o mesmo das outras. Em 1917, novos “sócios” dão maior status ao Liceu baiano, engenheiros, militares, negociantes e profissionais liberais passam a dar um caráter de classe mais visível. Considerando o aspecto coronelista e latifundiário da Bahia como um todo, e a lentidão do processo efetivo de libertação dos escravos depois da lei de 1888, o Liceu de Salvador teve rigorosamente um papel decisivo na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre nos anos que se seguiram à abolição da escravatura – ainda que a linha de cor, mesmo na Bahia, sempre tenha sido sentida institucionalmente, principalmente associada ao peso que uma dada instituição tem para o meio social.

Em todo caso, O Liceu de Artes e Ofícios na Bahia, nas palavras de Valladares permitiu a existência de “uma verdadeira elite de homens de côr”. (VALLADARES, Clarival do Prado. “O negro brasileiro nas artes plásticas”. In: Cadernos Brasileiros, (47): 97; 100; 104; 109, mai/jun, 1968. p.101). Nesse sentido, um dos mais importantes intelectuais baiano Manoel Querino (1851-1923), certamente encontra-se entre as figuras mais ilustres dos que “nasceram” na instituição. Ele foi sócio da “liga operária baiana” (1876) e da “Sociedade Protetora dos Desvalidos” (1877), entre outras agremiações. Em 1895, ele obteve o diploma em desenho da Academia de Belas Artes, chegando a ser professor de desenho industrial tanto no Colégio dos Órfãos de São Joaquim quanto no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Entre inúmeros livros, Querino escreveu manuais didáticos de desenho linear e geométrico:  Desenho Linear das Classes Elementares – manual didático (1903) e Elementos de Desenho Geométrico (1911).

Outro pintor negro ligado ao Liceu de Artes e Ofícios na Bahia foi o fluminense Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), discípulo de Zeferino da Costa,  estudou na antiga Academia Imperial de Belas Artes ganhando o prêmio “menção honrosa”(1883), “medalha de ouro” em pintura histórica (1884)  e o “prêmio imperatriz” (1885). Ele próprio chegou a ser professor de desenho e paisagem no Liceu de Artes e Ofícios de Salvador (BA), aonde ficou por três anos, antes de voltar pro Rio de Janeiro aonde viu frustrada a sua tentativa de criação de uma “Escola de Belas Artes”. 

Como curiosidade intrigante, aponta (SILVA, R. Arte Afro Brasileira: altos e baixos de um conceito, 2016, nota 28 da p. 26): “O Liceu de Artes e Ofício de Salvador, como dissemos, foi inaugurado em 1872, ano do primeiro recenseamento brasileiro. Embora não tenhamos os dados da urbana Salvador, outrora capital do Brasil, segundo este censo, a população escrava de toda a Bahia excedia em 1.043.968 de pessoas livres. (a população indígena contava em 52837, que representava 7,3% da população baiana da época)”.  Com um número tão alto de negros e descendentes, era de se esperar que as artes e ofícios sentissem essa presença de modo decisivo, no entanto, embora Valladares supracitado esteja certo quanto à presença de negros na elite, essa presença foi paulatinamente amenizada a partir do contínuo processo de embranquecimento institucional pelo qual passou essa e muitas outras instituições brasileiras.