Cartola

Angenor de Oliveira (Rio de Janeiro, 1908 – 1980)

Cartola (W

 Nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1908, filho de Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira. Angenor era o terceiro dos dez filhos do casal, que morava no Catete, mas, quando Angenor tinha oito anos, mudou-se para as Laranjeiras, onde o garoto viu ser construído o estádio do Fluminense, que se tornaria seu clube do coração. Quando criança, apesar de não ser um excelente aluno, Angenor conseguiu estudar até a quarta série. O menino era muito apegado ao avô, Luis Cipriano Gomes, que havia sido cozinheiro do ex-presidente do Brasil, Nilo Peçanha.

 

No bairro das Laranjeiras, para onde a família Oliveira havia se mudado em 1916, havia dois ranchos carnavalescos: o “União da Aliança” e os “Arrepiados”. Ambos desfilavam no feriado do carnaval. Seu Sebastião de Oliveira participava do segundo rancho, tocando cavaquinho e Angenor também chegou a desfilar no grupo, pouco antes de completar os onze anos. As cores oficiais do rancho eram o verde e o rosa, cores que teriam inspirado Angenor quando, mais tarde, fundou a estação Primeira de Mangueira. Foi nessa época do convívio inicial com o rancho do qual o pai fazia parte, que Cartola começou a aprender os primeiros acordes no cavaquinho.

Em 1919, devido a uma crise financeira, a família se mudou para o morro da Mangueira, mais precisamente à região do morro conhecida como Buraco Quente. Lá, o garoto de onze anos começou a trabalhar em uma tipografia, para ajudar na renda familiar. Nos momentos de folga, Angenor viria a conhecer, logo no início da convivência no morro, o amigo Carlos, que seria mais tarde apelidado de Carlos Cachaça e quem lhe apresentaria as casas mais famosas do morro, onde eram cultuados os deuses afro-brasileiros e onde o batuque “corria solto”. Carlos fundaria, mais tarde, com Angenor e outros bambas mais, a Mangueira.

Aos quinze anos, Angenor ganhou o apelido que o acompanharia pelo restante da sua vida. O menino, depois de trabalhar em tipografia e em gráfica, encontrou emprego na construção civil. Foi nessa época que ele começou a usar um chapéu coco (chamado erroneamente de cartola), justamente para impedir o cimento de cair em sua cabeça. Como ele usava a “cartola” durante o dia inteiro, ganhou o apelido.

Quando, um pouco mais tarde, dona Aída de Oliveira faleceu, seu Sebastião, com quem Cartola não tinha uma boa relação, partiu do morro da mangueira deixando um recado para o filho: “Vou-me embora desse morro, mas deixo aqui um Oliveira para fazer vergonha”. Sem pai e sem mãe, Cartola caiu na boemia, madrugada afora, entre mulheres e sambas. E foi então que o jovem terminou por se apaixonar pela vizinha Dona Deolinda, mulher madura e casada, que já há algum tempo estava cuidando do jovem doente. A mulher então abandonou o marido para dividir o barraco com aquele garoto de dezoito anos. Cartola trabalhava como pedreiro e Deolinda como lavadeira, assim iam vivendo. Em depoimentos de pessoas que conviveram com Cartola, recolhidos por Marília Barbosa e Arthur de Oliveira, Deolinda é sempre lembrada como uma pessoa bondosa e acolhedora.

Foi quando Cartola tinha 18 anos, em 1926, que ele fundou, ao lado de Carlos Cachaça, Saturnino, Zé Espinguela, Antonico e outros mais, o Bloco dos Arengueiros. O grupo, que passou a concorrer com os outros blocos do morro, era um dos mais temidos, pois seus membros eram muito brigões. Além de bons no samba, eram bons também nas pernadas e na navalha. Mas eram melhores no samba e por isso, dois anos depois, se reuniram os Arengueiros e mais alguns sambistas do morro, para fundar a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Cartola, que teve o cargo de primeiro Diretor de Harmonia da Escola, foi quem escolheu as cores oficiais do grupo: verde e rosa. A proposta era juntar todos os blocos do morro em torno da nova Escola de Samba e embora tenha havido alguma resistência, todos os sambistas terminaram por acatar a proposta.

O sucesso da Escola de Samba trouxe fama ao nome de Cartola, que se destacava como um dos principais compositores do grupo. Atrás dele subiram ao Morro da Mangueira os principais cantores do rádio da época, entre eles Silvio Caldas e Francisco Alves. Foi este a gravar o primeiro sucesso de Cartola como compositor, “Divina Dama”.

Data de 1932 a primeira parceria entre Cartola e Carlos Cachaça. E logo na estreia a dupla obteve grande êxito. O belo samba “Pudesse meu ideal” foi composto por ocasião do desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e ajudou a Mangueira a tornar-se campeã do Carnaval daquele ano. Cinco anos mais tarde, Cartola foi exaltado como o melhor compositor das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, em concurso idealizado pelos jornalistas Vagalume e Enfiado e realizado pelo Departamento de Turismo da Prefeitura do Rio. Os sambas apresentados foram o ainda hoje inédito Partiu e Sei Chorar, que só viria a ser gravado na década de setenta. Pouco depois deste prêmio, Cartola teve uma grande tristeza, faleceu o seu amigo e admirador Noel Rosa, aos 26 anos, deixando uma das mais ricas e admiradas obras do cancioneiro popular brasileiro. Os dois eram muito próximos e Noel era um fã confesso do sambista mangueirense. Os dois chegaram inclusive a compor sambas em parceria. Para homenagear o amigo, Cartola compôs o samba A vila emudeceu.

Foi a visita do maestro Leopold Stokowski (1882 – 1977) e sua comitiva de músicos ao Brasil, ocorrida em agosto de 1940, que possibilitou ao gênio Cartola gravar uma composição sua pela primeira vez. O maestro esteve na América do Sul com a finalidade de gravar músicas para o Congresso Pan-Americano de Folclore e, no Brasil, teve a colaboração de Heitor Villa-Lobos. O maestro brasileiro indicou ao estrangeiro os melhores artistas da nossa música popular, entre eles o amigo Cartola, que Villa-Lobos conhecia desde o final da década de trinta.

Foram gravadas, entre cerca de quarenta músicas, quatro de autoria de Cartola: Meu Amor e Primeiro Amor, ambos de Cartola e Aluísio Dias. Tristeza, de Cartola e Orlando Batista e Quem me ver sorrir, de Cartola em parceria com Carlos Cachaça. Destas, só a última foi reproduzida na gravação comercial dos dois discos lançados nos Estados Unidos. A música, eternizada, tem um belíssimo coro das pastoras da Mangueira e o violão certeiro de Aluísio Dias. Mas Cartola só viria a ouvir a gravação, pela qual recebeu um dinheiro módico, na década de setenta.

Em 1940 Cartola recebeu o prêmio maior do samba carioca: foi escolhido o Cidadão-Samba daquele ano. O concurso contava com os principais nomes do samba do Rio de Janeiro. No ano seguinte, ao lado de Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, formando o Conjunto Carioca, Cartola fez uma serie de apresentações e programas de rádio em São Paulo. Nesta ocasião, os três sambistas, ao voltarem para o Rio de Janeiro no dia do desfile das Escolas de Samba, decidiram desfilar juntos nas Escolas dos três. No entanto, a roupa do Conjunto era branca e preta e em razão disso, a Portela não deixou os três desfilarem, pois as cores da Escola são o branco e o azul. Na realidade, foi permitido a Paulo, ídolo maior da Escola, desfilar, mas não aos amigos, que só desfilariam vestindo azul e branco. Em solidariedade aos amigos, Paulo da Portela optou por não desfilar e rompeu relações com a Escola. Na “De Mim Ninguém se Lembra”, de Heitor e na Mangueira de Cartola, porém, os três amigos foram bem-vindos, na segunda Escola, inclusive, desfilaram compondo a comissão de frente. Ao término dos desfiles, Paulo da Portela, decepcionado, voltou para a Mangueira com Cartola e dormiu na casa do amigo, enquanto a Portela conquistava o tricampeonato.

Em 1944, além de Diretor de Harmonia, Cartola tornou-se o presidente de honra da recém-reatada Ala de Compositores da Mangueira. Dois anos depois, porém, novos acontecimentos o afastariam definitivamente da Escola. Primeiro, o sambista teve uma forte meningite, que durou quase um ano e que só foi superada graças à ajuda preciosa de sua esposa Dona Deolinda. No entanto, pouco depois de Cartola se recuperar, a mulher faleceu, deixando-o em estado de enorme tristeza. Um tempo depois, o compositor se apaixonou por uma mulher chamada Donária, nada quista no Morro de Mangueira, que o convenceu a deixar a música e o morro. Com ela, Cartola foi morar em Nilópolis, depois no Caju, e ficou um bom tempo afastado do violão, do samba e da sua querida Mangueira.

Nesse período de grande dificuldade, transcorrido ao longo da década de cinquenta, o compositor foi até tido como falecido. Quem o trouxe de volta ao morro da Mangueira, após o rompimento do namoro com Donária, foi Dona Zica, irmã da esposa do seu parceiro Carlos Cachaça. Cartola estava magro, abatido e bebendo muito, mas o novo amor o fez muito bem. Zica ajudou o sambista a se recuperar e conseguir um novo emprego, desta vez como lavador de carros no Pirajá. A nova companheira também se esforçou para trazer o marido de volta para o samba e para a Estação Primeira de Mangueira. E foi então, naqueles lances inexplicáveis do destino, quando Cartola, no intervalo do trabalho como lavador de carros, foi até um café tomar uma “cana”, que ele encontrou o jornalista Sérgio Porto, também conhecido como Stanislaw Ponte-Preta, filho do velho amigo Lúcio Rangel. Sérgio se esforçou demasiadamente para reintegrar o sambista no meio artístico, conseguiu um emprego para Cartola no rádio, que não durou muito, é verdade, mas fez com que Cartola retomasse velhos contatos e daí em diante, graças à ajuda dos amigos, jamais ficaria desempregado.

Foi na década de sessenta, quando uma turma da pesada do samba, composta por nomes como Zé Ketti, Elton Medeiros, Carlos Cachaça e Nelson Sargento, que gostava de se reunir para tomar umas e outras, seja na casa do Cartola, seja nos bares cariocas, se viu de repente sem casa ou botequins para batucar e beber, que um dos amigos e admirador confesso do grupo, Eugênio Agostini, teve a ideia de criar um botequim especialmente para a nata do samba carioca. Nessa época, Dona Zica, que sempre foi uma cozinheira de mãos cheias, trabalhava fazendo marmitas. A genial ideia de Agostini era que, enquanto ela cozinhasse, Cartola liderasse o encontro dos sambistas. Nascia assim em 1963, numa grande festa de inauguração, o famoso restaurante Zicartola, localizado na Rua da Carioca, número 53, lugar que se tornou também o endereço do casal mangueirense. Inicialmente, o lugar abria só para o almoço, porém, com o enorme sucesso, passou a atender também no horário noturno. O samba ocorria às sextas-feiras, depois começou a acontecer às quartas-feiras também. Zicartola é hoje considerada, pioneiramente, a primeira casa de samba do Rio de Janeiro. Foi, não apenas um restaurante, mas o início de um movimento cultural de valorização do samba tradicional e de seus compositores. Por lá circularam, ao longo dos quase dois anos de existência (setembro de 1963 a maio de 1965), nomes como Hermínio Bello de Carvalho, Paulinho da Viola (que começou por lá sua carreira de sucesso), Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Ze Ketti, Elton Medeiros, Nelson Sargento e o jornalista Sérgio Cabral. Entre os frequentadores assíduos da casa, estavam nomes como Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna e Armando Costa.

Em outubro de 1964, Zica e Cartola finalmente oficializaram a união em uma cerimônia de casamento realizada na Paróquia Nossa Senhora da Glória, que contou com a presença de grandes amigos e de muitos jornalistas. Antes disso, Cartola, que tinha uma doença no nariz chamada rosácea, passou por uma cirurgia. Graças à intervenção dos amigos, não precisou tirar dinheiro do bolso. Por descuido do próprio sambista, a cirurgia deixou uma mancha negra na região, sinal que se tornaria sua marca característica. Para o casamento, Cartola ganhou também uma dentadura nova, de modo que ficou bonito no seu terno de noivo.

Com o fim do Zicartola, que embora não tenha proporcionado lucros financeiros, rendeu muitos amigos e histórias para contar, o casal Zica e Cartola, sem dinheiro, mudou-se para Bento Ribeiro, onde vivia o pai de Cartola. A mudança reataria a relação estremecida entre pai e filho, desde a época que Angenor era adolescente. Agora, os dois passavam horas e horas jogando conversa fora e tocando violão. O pai, que acompanhara o sucesso musical do filho, sabia todas as músicas “de cor e salteado”.

Com inestimável ajuda do então ministro Macedo Soares e do então governador do Rio, Negrão de Lima, em 1968 o Estado doou um terreno na Mangueira para que Cartola, finalmente, construísse sua casa própria, justamente no morro que morava em seu coração. Houve uma festa de comemoração e muitos amigos ajudaram na compra do material para construção. E foi Cartola, no alto de seus sessenta anos, quem construiu a casa tijolo por tijolo. Assim surgiu o endereço que se tornou o mais conhecido do Rio de Janeiro: Rua Visconde de Niterói, 896. Foi na janela desta casa que Cartola e Zica posaram para o segundo LP do cantor.

Em 1974, finalmente, graças ao trabalho de inestimável valor cultural realizado pela gravadora Marcus Pereira e pelos esforços do famoso Pelão, que produziu o disco, Cartola gravou o seu primeiro LP. Muitas das canções imortalizadas nas vozes de outros intérpretes, finalmente foram conhecidas pelo grande publico na maravilhosa voz do seu compositor. O disco contou com um time de músicos da melhor qualidade, entre os quais Jorginho do Pandeiro, Luna e Marçal no ritmo, Dino no violão e também na direção musical, e Raul de Barros no trombone. A alegria de Cartola com o sonho realizado foi tremenda, tanto que ele imediatamente voltou a compor. O disco, bastante elogiado pela crítica, fez um enorme sucesso e levou todos os prêmios possíveis daquele ano.

Em 1976, um novo LP e um novo sucesso de público e crítica. A composição “As rosas não falam” foi a mais festejada do disco e se tornou rapidamente uma das mais conhecidas do compositor. Show em diversos estados do Brasil: Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Ano seguinte vem e com ele um novo disco, o Verde que te quero rosa, desta vez pela gravadora RCA-Victor e com produção do jornalista e amigo Sérgio Cabral, um dos seus mais antigos admiradores. A capa do disco é uma das fotos mais famosas de Cartola, ele tomando café numa xicara verde e um pires rosa. Na mão que segura a xicara, um cigarro queimando. Perto de seus setenta anos, o sambista estreava o seu primeiro show individual: “Acontece”, acompanhado pelo grupo “Gato Preto”. Mais um sucesso de crítica.

Pela necessidade de compor cada vez mais, Cartola deixou a Mangueira em 1978. Lá no morro sempre tinha visita, o que atrapalhava o mestre na sua concentração para compor seus sambas. O casal mangueirense, que manteria o morro em seus corações, optou por residir na região tranquila de Jacarepagua. Nesta casa, foi realizada em 1978 uma grande festa de setenta anos para Cartola. Mas as comemorações não pararam por aí, um quarto LP foi preparado também no mesmo ano.

A partir do final da década de 70, a saúde de Cartola foi se fragilizando e internações se tornavam cada vez mais frequentes. Em 1977, o sambista teve identificado um câncer na tiroide. Operação feita, o problema retornou dois anos depois. No começo de 1980, uma nova internação, desta vez ocasionada por uma hemorragia digestiva. Recuperado, comemorou o aniversario de 72 anos com os amigos no apartamento de Heminio Bello de Carvalho, mas em novembro o poeta mangueirense voltou a ser internado e desta vez não resistiu. Cartola faleceu dia 30 de novembro de 1980, no Rio de Janeiro, aos 72 anos. Seu corpo foi velado no Palácio do Samba, a quadra da Estação Primeira de Mangueira. Na ocasião, as principais Escolas de Samba cariocas mandaram seus estandartes para fazer companhia ao manto verde e rosa. O corpo do sambista foi enterrado no cemitério do Caju, ao som do surdo da mangueira tocado por Mestre Valdomiro e pelo coro dos presentes entoando baixinho As rosas não falam.

Pelos amigos e familiares, Cartola sempre é lembrado pelo seu bom coração, sua solidariedade, seu desprendimento em relação aos bens materiais e seu carisma. É considerado por muitos como um dos maiores compositores brasileiros que já existiu.  

 

Fontes e Referências

Foto: Walter Firmo

SILVA, Marília T. Barboza da e OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Cartola; os tempos idos. Rio de Janeiro: FUNARTE / INM / DMP, 1983.


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