Por quatro dias assistimos pela televisão ao dantesco espetáculo do assassinato de George Floyd -- esse afro-americano -- por um soldado branco com a mão no bolso e o joelho em seu pescoço, até matá-lo sufocado. A últimas palavras de Floyd foram “eu não consigo respirar”, e essas duraram oito minutos. Não eram de socorro, e sim de falta de ar diante daqueles três brancos que, como bichos selvagens, mantinham a mão no bolso e o joelho no pescoço de Floyd.
Uma vergonha para a humanidade, um destroço dessa sociedade americana branca e raivosa que antes dependurava os negros em árvores nos linchamentos do sul, (como lemos em Strange Fruit*) enquanto centenas de sanguinários brancos encapuçados em nome da cruz de Cristo, em chamas, assistiam a cena. Que ódio é esse que persiste por tantos séculos por lá e por aqui também?
Porque do lado de cá da imagem horripilante – um animal branco com a mão no bolso, ajoelhado, matando um homem negro –, ficamos desesperados com desejo de tirá-lo da fúria do bicho raivoso, impávido e frio. Já não bastasse tanta desgraça que assola o mundo nesse momento de uma pandemia assassina que mata milhares de pessoas pelo planeta afora.
Destruindo valores como um trator desalmado, passando por cima de todas as conquistas desse mundo. Que humilhação para a humanidade, que se pergunta do valor da campanha silenciosa de Martin Luther King Jr. pelos direitos civis. Qual seria a reação dele diante dessa catástrofe humana nos Estados Unidos da América, a sua terra? Será que valeu a luta pelos direitos civis e seu assassinato? Foi mesmo uma vitória, além de tirar os negros de trás dos ônibus e dos bondes? Foi mesmo uma conquista, além da eleição do Presidente Obama? Além da Universidade negra de Howard? E a morte do Presidente Abraham Lincoln por assinar a emancipação dos escravos dos Estados Unidos, muito antes do Brasil, em 1862?
Quando da minha primeira viagem aos Estados Unidos, em 1972, um amigo empresário brasileiro de origem europeia me aconselhou a não ir. Ele tinha visto uma placa num restaurante em Washington, D.C. que anunciava: “AQUI NÃO ENTRA NEGRO, CACHORRO E JUDEU”. No Brasil, antropólogos e historiadores falavam de uma Democracia Racial que já naquela época era uma falácia. Entre os negros de Nova York, diferente daqui, havia uma espécie de irmandade. E já não havia negros e negras nos bancos de trás dos ônibus.
Hoje, senti um orgulho atravessado de dor com a reação branca latina e negra dos Estados Unidos com seus protestos e passeatas. Eu queria tanto que em cada assassinato de crianças e adolescentes negros no Brasil houvesse a mesma reação nos negros daqui. E que não ficassem atacando negros numa discórdia sem fim, e que governantes corruptos não atacassem policiais negros mal pagos e enfurecidos com sua miséria. Que não matassem seus irmãos pretos e crianças que são vulneráveis à tanta desgraça nessa sociedade que persiste no Brasil, indiferente e frio, nessa vergonha social que devasta o país em que vivemos. Uma vergonha!
Do outro lado do mundo, devem continuar olhando absortos aqueles selvagens do norte da América, na fantasia da maior democracia do mundo e o subdesenvolvimento irracional da América do Sul. A escravidão foi no Brasil uma espécie de naufrágio dos direitos humanos, e que gerou negros que se voltam contra negros. Que bom seria se além do futebol, do carnaval e das Escolas de Samba, eles fossem além da sua própria miséria.
Emanoel Araujo