Eles eram a um só tempo dois baluartes das artes pernambucanas, Francisco e Ricardo Brennand, o primeiro um grande artista da escultura, o segundo um grandissimo colecionador. Os dois se entrelaçaram por caminhos distintos, mas a arte sempre esteve no meio dos dois. E, por ironia do destino, os dois partiram desse mundo em diferentes meses no mesmo ano de 2020.
Conheci Dr. Ricardo Brennand com a arquiteta Janete Costa e sua sobrinha Conceição Brennand; sentados estávamos na varanda da Casa da Várzea, cujo projeto era do próprio Brennand quando tinha 16 anos. Ali já se apontava certo gosto gótico com arcos rebaixados em granito cinza. Fomos conversando por horas a fio diante daquele imenso jardim onde pastavam animais silvestres soltos com a licença do IBAMA. Ricardo foi aprofundando suas ideias e o seu ideal e na conversa surgiu o nome de Edson Nery da Fonseca, famoso bibliotecário e grande amigo de Gilberto Freyre, filho de um amigo seu. Brennand mais que depressa fez contato, pois ele havia adquirido a biblioteca do pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Com João Câmara e Jose Carlos Viana Bruno Lisboa, voltei muitas vezes ao Recife por muitas causas do MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães), para aquele espaço levamos a exposição das gravuras de Picasso da Coleção da Caixa de Madrid e os belíssimos desenhos de Michel Basquiat. E, por último, levamos também a exposição do mestre francês August Rodin, foi quando dr. Ricardo convidou o curador Jacques Vilain para almoçar. Éramos eu, Valeria Mendonça e Ana Helena Lefebvre, todos do projeto Rodin.
Fomos andando pelo jardim com o intuito de mostrar o castelo e a monumental escultura das Três Graças instaladas no fosso do Castelo. No almoço estavam todos os filhos mais Janete Costa. Dona Gracita com sua fidalguia me disse que era um almoço improvisado com diferentes pratos soberbamente preparados e também com sobremesas das mais diversas. Depois do lauto almoço fomos todos conhecer o castelo, também era naquela ocasião a primeira vez que a família tinha acesso ao castelo.
Dona Gracita agradecia muito por aquela oportunidade de conhecer o secreto projeto do misterioso Castelo. E lá estava instalada a monumental escultura no fosso; junto de nós haviam três ou quatro especialistas em restaurar mármore vindos do Vaticano, eles estavam montados em andaimes trabalhando para restaurar a obra adquirida do espolio da família Smith de Vasconcellos, em Itaipava, no Rio de Janeiro, e que havia se acidentado no transporte entre o Rio de Recife. Visto o Castelo, todos estavam surpreendidos com o fato! Jacques estava estupefato com as circunstâncias e a família também. Brennand era um próprio senhor feudal com seus cisnes e flamingos no castelo, era surpreendente como tudo aquilo se organizava sem que ninguém soubesse. Nem mesmo Dona Gracita, sua esposa.
Ele era mesmo caudaloso, com seus gestos, sua amizade. Quando lhe pedimos que doasse “Homem sobre a Coluna”, de August Rodin, ele o fez com um significado gesto e com muita emoção. Num sábado pela manhã, diante da escultura, o Edson Nery da Fonseca leu o discurso de doação que homenageava Antônio Brennand, filho de Ricardo desaparecido com grave doença.
Depois disso Ricardo ainda construiu a reserva técnica que leva o seu nome na Pinacoteca, aliás, ela ainda recebeu dele uma outra doação, uma obra do pintor Eliseu Visconti: ”Hino a Bandeira”, uma obra histórica onde pode se ver retratados Getúlio e Dona Darcy Vargas, à frente de uma escola pública. Ele ainda foi doador de uma escultura representando uma garça que jorra água no lago do Jardim da Pinacoteca.
Assim era o Dr. Ricardo Brennand, uma força da natureza, um homem por inteiro em suas aspirações, um construtor extraordinário de muitas estéticas e muitos desejos de seus muitos pontos de vista. Sua partida deixou o grande legado para Pernambuco e ainda semeou para além de tudo aquilo sua generosidade.
Seu falecimento, assim como o de seu primo Francisco Brennand, deixam um grande vácuo para as artes de Pernambuco. Para mim ficou a grande frustação de não ter podido juntar um elo que havia se perdido, e de não ter podido realizar uma grande exposição de Francisco Brennand nos espaços do Instituto Ricardo Brennand. Caso fosse possível, assim selaria-se um elo que se partiu e assim se uniria o que havia se separado desses dois gigantes da Várzea.
Emaoel Araujo
Diretor-curador do Museu Afro Brasil