Há poucos dias visitei o meu querido amigo e irmão Deoscóredes Maximiliano dos Santos, que estava deitado, meio adormecido. Beijei sua mão longa e delicada. Ele me sussurrou algumas palavras pela surpresa da minha aparição sem anunciar. Por momentos estive com Juana dos Santos, sua inseparável companheira de tantos e tantos anos, sua fiel e apaixonada mulher como foram as do rei Xangô. Ela organizava, como fruto desse amor, a grande homenagem que lhe seria prestada no dia 2 de dezembro nos seus 96 anos, o siré dos 96 anos do Mestre Didi, e me mostrava a lista dos amigos que seriam convidados para a festa. Disse-lhe também que, em novembro, o Museu Afro Brasil, em São Paulo, lhe prestaria uma homenagem para celebrar os 25 anos do livro “A mão afro-brasileira”. Qual a minha surpresa com a sua morte.
Mestre Didi sempre foi um homem voltado para a cultura e a vida afro-brasileira, desde os muitos livros que publicou sobre o culto dos ancestrais, no qual tinha o honroso cargo de Alapini. Foi um artista escultor de lindas obras, cuja temática falava desse extraordinário universo das coisas da África mítica, onde os deuses estão na terra, e por isso suas esculturas eram totêmicas, saíam do chão para alcançar o infinito. Ele sabia desafiar o espaço com a linha que se desdobrava em volutas encimadas por pássaros, numa alusão a Oxalá, ou se desdobrava em formas triangulares como os oxês de Xangô ou as palmas forradas de dores fortes de tecidos protegendo a natureza. Os fios de palmas se transformavam em xaxarás, ibiris, paxorôs com miçangas coloridas, adornadas com fatias de couro de muitas cores.
Esse era o artista no seu pequeno atelier, dando forma e vida à mitologia, às lendas dos orixás, às complexidades dessa cultura milenar: do sofrimento, da alma, do espírito, da dor e das raízes encravadas na memória do tempo e do espaço, diante da incompreensão dos ignorantes. Ele foi um sábio e um homem voltado para o sagrado, talvez ensinado pela sua madrinha Dona Aninha, por sua mãe Dona Senhora, talvez até na atmosfera verde e selvagem do Ilê Axé Opô Afonjá, com todas aquelas ebames num coro uníssono para Xangô, o justiceiro. Mas houve um outro Mestre Didi, amigo de Lídio, de Camafeu, de Waldeloir Rego, de Carybé, de Jorge Amado, de Vivaldo Costa Lima, de Tibúrcio Barreiros, de Dorival Caymmi, e de muitos amigos pelo Brasil afora, pelo mundo afora, pela África afora.
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, sacerdote do culto dos Egunguns, Alapini do Ilê Asipa, mestre sagrado do culto dos ancestrais, artista escultor cuja obra encantou brasileiros e estrangeiros no “Magiciens de la Terre”, em Paris, na sala especial da Bienal internacional de São Paulo, na grande exposição no Museu Afro Brasil, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira em Salvador. Comendador da ordem do mérito da cultura nacional, foram muitos os degraus de sua obra artística e sacerdotal. Pairou por esse mundo de Olodumare e, como o deus Oxalá, transformou o barro e a palha com miçangas coloridas em seres vivos que falam da eterna e milenar cultura de um povo, e também a cultura viva, que pulsa no espírito do novo mundo. Adeus, Alapini, vá ao encontro de suas outras mulheres, que lhe amaram como um filho pródigo: Dona Aninha e sua mãe, Dona Senhora, verdadeiras rainhas do Ilê Axé Opô Afonjá. Kaô Kabecilê.
Emanoel Araujo é escultor e diretor-curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo.
Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde, em Salvador (BA).